Faculdade de Letras da Universidade do Porto - OCS, MEDINFOR IV - A Medicina na Era da Informação

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A VERDADE SE PINTA NUA - A CULTURA E CIÊNCIA NOS COLÓQUIOS DE GARCIA DA ORTA
Manuel Cruz

Última alteração: 2017-10-18

Resumo


A verdade se pinta nua

A cultura e ciência nos Colóquios de Garcia da Orta

 

Direcionado para o subtema Memória, Identidade e Cultura, a minha investigação sobre Garcia da Orta (Colóquios dos Simples e Drogas da Índia, 1563) procurou revelar os seus traços científicos, numa época em que o método ciêntifico era ausente (séc. XVI), e também demonstrar a importância da literatura e da linguagem na sua relação simbiótica com a ciência.

A partir de uma metodologia literária, análise textual dos Colóquios, e comparativa com outros trabalhos científicos da sua época e das épocas posteriores, consegue-se compreender a inovação e originalidade de um dos mais importantes médicos e humanistas portugueses.

Desta metodologia, a análise do texto original e os comentários do Conde de Ficalho revelaram certos traços científicos que se completam numa espécie de método científico que, se não apresentado assim, demonstra já um cariz precursor dos métodos de Francis Bacon (Novum Organum) e de Descartes (Discurso do Método).

O método pode ser caracterizado em três momentos: observação, pela qual Orta atribui à visão um valor superior comparado com a autoridade dos antigos (escolástica)[1]; a dúvida, esta como autentificação da observação e verificadora do conhecimento adquirido[2]; por fim, a experimentação como forma de testar constantemente o conhecimento adquirido e, assim, aproximar-se da verdade (verosimilhança)[3].

Acrescenta-se, como complemento a este método, a atitude ética relevante e fundamental da prática medicinal, demonstrada quando Orta se recusa a experimentar uma droga num escravo, pela razão de ir contra a sua consciência[4].

Mas se este método científico se apresenta fundamentalmente como prática e investigação, é na literatura e na linguagem que encontra forma de divulgar os seus resultados. Não é pois de admirar que, se durante o Renascimento o latim ainda era a língua das universidades e da ciência, Orta escreverá os seus Colóquios em latim, para logo depois traduzir para português e apresentá-los então na língua vulgar para que seja lido por todos e não apenas eruditos[5]. Também, o estilo literário de transparência e clareza são fundamentais para a compreensão do leitor e para a apresentação clara dos resultados científicos[6].

Contudo, apesar do método inovador e dos conhecimentos sobre drogas de Garcia da Orta, a divulgação científica só aconteceu pela tradução de Clusius para latim e esta como um resumo do Colóquios, impedindo assim uma maior influência de Orta na comunidade científica internacional.

Em conclusão, a investigação sobre os Colóquios de Orta revelou um antecendente aos métodos científicos ainda hoje praticados e uma compreensão sobre a relação essencial entre literatura, cultura e ciência, ou como Camões afirmaria de Orta:

Dará na Medicina um novo lume,

E descobrindo irá segredos certos

A todos os antiguos encubertos.[7]


[1] “Não duvido já pois o vejo com os olhos” (Orta, G. d. (2011). Colóquios dos Simples e Drogas da Índia. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 144).

[2] “Bem sei que quem não sabe, que não duvida (…)” (Idem, 152).

[3] “(…) elles se derão pouquo á pratica e muito ás escholas, e vós e eu fizemos o contrairo (…)” (Idem, 24).

[4] “[Ruano] Déstelo já a algum voso negro ou negra?/[Orta] Nam, porque nam me conformei com minha conçiencia a fazelo.” (Idem, 296).

[5] “(…) traladeo em portugues por ser mais geral, e porque sei que todos os que nestas indianas regiões habitam, sabendo a quem vai entitulado, folgaram de o leer.” (Idem, 5).

[6] “a verdade se pinta nua” (Idem, 79).

[7] Primeiro poema de Camões impresso e inscrito nos Colóquios (Idem, 9).