Última alteração: 2023-08-14
Resumo
A comunicação científica constitui dispositivo formal de divulgação de resultados de pesquisas e elemento vital para o avanço do conhecimento. No campo da medicina, implica também em práticas médicas com potencial de preservar vidas, ou, quando imprecisas, expor pacientes a riscos. Em conjunturas de emergência global em saúde pública, como na COVID-19, ou em ocorrências endêmicas como Zika vírus, pesquisas falhas, corrompidas em qualquer etapa do ciclo da informação, podem trazer prejuízos para a saúde pública, expandindo a extensão dos danos.
Para mitigar ou atenuar essas anomalias, a retratação, mecanismo legítimo de correção do registro científico, tem sido utilizada por editores e autores para sinalizar que um artigo contém equívocos não intencionais, como erros em métodos ou amostrais, ou fraudes deliberadas, como, plágio, fabricações e falsificações. Embora tal mecanismo tenha se mostrado um avanço no âmbito da comunicação científica, as recorrentes ocorrências da comunicação científica imprecisa e fraudulenta na pesquisa médica podem apresentar uma miscelânea de problemas. Em vista disso, o objetivo dessa pesquisa é reunir as principais considerações no tema, a fim de identificar elementos subjacentes, podendo servir de base para pesquisas futuras sobre o assunto.
Para o levantamento de estudos de retratação no domínio da medicina, utilizou-se o método de revisão narrativa. Trata-se de pesquisa exploratória, não sistemática e não exaustiva, feita a partir de levantamento nas bases de dados Web of Science, Scopus, Dimensions e no motor de busca Google Scholar, sem delimitação temporal.
Principais resultados
No contexto internalista da ciência, estudos de retratação na medicina têm constatado que artigos retratados nesse campo, incluindo até mesmo ensaios controlados randomizados retratados, têm sido utilizados para fundamentar pesquisas científicas ulteriores, causando prejuízos ao sistema formal de comunicação da ciência. Isso constitui um risco para a manutenção de estoques de informação científica confiáveis, e evidencia também um fator de preocupação extrínseco, visto que dados e informações produzidas no domínio da medicina influenciam práticas médicas, e no estabelecimento ou alterações em protocolos de saúde e afins.
Em decorrência de estudos de citações pós-retratação, pesquisas nesse domínio, mas com foco no contexto do ecossistema da indústria da informação científica— isto é, aspectos que envolvem editores, editoras e bases de dados—, assinalam alguns desafios e tomadas de decisão a serem implementadas, que incluem, mas não se limitam, a necessidade de:
(i) melhora na prevenção e detecção de pesquisas defeituosas em processos internos de revisão do periódico (desk review) e por pares;
(ii) adoção de padrões claros de informatividade em avisos de retratação, como por exemplo os contidos nas diretrizes de órgãos bem estabelecidos, tais como Committee on Publication Ethics (COPE) e International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE);
(iii) melhor sinalização de artigos retratados em bases de dados, sítios de periódicos, e em cópias impressas ainda existentes em algumas bibliotecas, a fim de evitar que continuem sendo citados por estarem mal ou inadequadamente rotulados como inválidos.
Nesse raciocínio, destaca-se também a necessidade de conscientização de pesquisadores no que concerne às práticas de citação, mostrando que não apenas a má rotulação implica em citações pós-retratação, mas também a negligência, em que se identifica que indicadores de citação ou o nome e fator de impacto do periódico têm sido utilizados como autoridades justificadoras de uma citação, em detrimento de uma leitura cuidadosa e aprofundada do artigo citado.
Esses aspectos implicam, portanto, na necessidade de um sistema de autopoliciamento, o que inclui treinamentos e educação em boas práticas e integridade acadêmica, ao tempo em que, a integridade tem sido relatada como uma das medidas eficazes para evitar vieses e falhas. Já no sentido da aplicação de sanções à incidentes e reincidentes de fraudes deliberadas, considera-se importante que as instituições estejam preparadas para investigar e lidar de forma célere e comprometida, em se tratando de casos de má conduta.
No contexto externalista, com a massificação dos sites de redes sociais, esses artigos também têm sido compartilhados pelo público, alimentando o ciclo vicioso de desinformação científica. Nessa esteira, têm também o potencial de minar a credibilidade da ciência em determinados grupos sociais. Um exemplo disso são os artigos retratados no âmbito da infodemia de COVID-19, e o compartilhamento de ideias antivacinas e alegações infundadas sobre a doença. Como sabe-se, movimentos antivacina influenciaram na reintrodução de doenças que já eram consideradas erradicadas, sendo a “hesitação vacinal” considerada como uma das 10 principais ameaças à saúde global, como classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Conclusões
A qualidade e validação da informação científica em saúde são basilares para a manutenção de estoques de informação confiáveis, sendo a retratação uma forma de sinalizar problemas e advertir sobre o não uso dessas informações.
Observando-se os resultados levantados nessa revisão narrativa, dentre os fatores de confusão observados, pode-se destacar que embora o número absoluto de retratações na área da medicina tenha aumentado ao longo do tempo, e que a maioria seja decorrente de algum tipo de má conduta, é salutar observar que esse crescente pode ser derivado de diferentes ações, que até o presente ainda não são claras na literatura especializada: se há de fato um aumento real de má conduta, ou de um aumento de conscientização e/ou de vigilância da comunidade científica, de softwares e ferramentas que auxiliam na detecção de potenciais fabricações ou falsificações, ou da maior propensão de editores em retratar a literatura problemática. Pesquisas tendenciosas, enganosas, ou fraudulentas da medicina na sociedade são inegavelmente perigosas e merecem maior atenção da academia.