Última alteração: 2023-08-14
Resumo
Introdução: Um dos géneros textuais mais antigos da literatura médica mundial é o caso clínico, com algumas das primeiras referências datadas de 1600 a.C. [1]. A sua evolução é percetível, embora não seja acentuada do ponto de vista diacrónico, tendo sido alvo, inclusive, de um período de diminuição da sua produção na segunda metade do século XX, aquando da instituição do método quantitativo defendido pela investigação biomédica [1]. No entanto, o seu valor pedagógico na formação de novos médicos e na prática clínica fez com que a comunidade médica contestasse a sua não aceitação em revistas médicas e, a partir dos anos 90, o género foi retomado, tendo lugar lançamentos como o da secção Case Reports da revista científica Lancet [2]. Desde então, o caso clínico tem ganhado relevância em revistas especializadas neste género (e.g., Medical Case Reports e BMJ Case Reports), e a sua evolução enquanto género textual tem sido tangível na consolidação das suas convenções retóricas e linguísticas gerais, tais como: (1) a escrita desde a perspetiva de um único médico ou grupo de médicos sobre (2) um único indivíduo ou pequeno grupo de indivíduos, diretamente envolvidos no caso que se apresenta, (3) na referência a algum evento raro ou novo relacionado com os sintomas, resposta ao tratamento ou inovação terapêutica, e (4) a existência de uma estrutura e estilo narrativo próprios [3, 4]. O interesse da comunidade profissional e editorial das diferentes especialidades médicas em alicerçar este género textual como uma prática comunicativa e uma ferramenta pedagógica de qualidade tem-se refletido quer na definição de recomendações e linhas de orientação para relatos e séries de caso (como o CARE, https://www.care-statement.org/), quer na publicação de instruções aos autores e normas de publicação específicas (em inglês, authors guidelines), que balizam a produção da escrita e influenciam as estratégias linguístico-discursivas utilizadas pelos autores [3]. No entanto, até a data, poucos estudos têm mostrado como essas instruções e normas condicionam o processo de escrita e construção do género textual caso clínico [3].
Objetivo: Analisar as variáveis de anonimização idade e etnia, num conjunto de casos clínicos publicados na revista científica BMJ Case Reports, antes e depois da implementação e melhoria de instruções aos autores e normas de publicação em 2018, e comparar as estratégias linguístico-discursivas utilizadas pelos autores no processo de anonimização do(s) paciente(s) com o objetivo de salvaguardar sua privacidade [5].
Métodos: Foi construído um corpus de caso clínicos, retirados da BMJ Case Reports (MeCaRe Corpus), com 166 artigos publicados entre 2012-2015 e 2019-2022 (560.080 palavras). Para a análise, foram tomadas como referências as orientações encontradas nas instruções para autores e normas de publicação da BMJ Case Reports sobre a anonimização de informação relativa ao paciente para as variáveis idade e etnia. Foram extraídas as expressões linguísticas relativas a cada variável e verificadas suas frequências a partir de concordâncias realizadas com WordSmith Tool, versão 7 [6]. Foram feitas também pesquisas manuais. Para a variável idade, foram pesquisados os sintagmas “[número]-day/month/year-old” (e.g., A 10-day-old male infant, a 27-month-old baby e a 46-year-old female patient), que por indicar a idade exata do paciente, não é recomendada, e “in his / her [número + s] / [substantivo em plural]” (e.g., in her 50s e in his seventies), que indica uma idade aproximada e cujo uso é recomendado pela BMJ Case Reports. Para a variável etnia, examinada no sentido lato de uma construção socio-antropológica que se estende para lá dos traços biológicos comuns que definem grupos raciais, para incluir aspetos identitários decorrentes de ocupações e hábitos culturais e origens geográficas, foram pesquisadas raízes constituintes de adjetivos e substantivos relacionados com religiões (e.g., buddh*, christ*, hindu*, juda*, sikh* etc.), com o constructo histórico-social de raça ou grupo étnico (e.g., white, black, African-American, Asian, Caucasian, etc.), e a referência à ocupação do paciente (e.g., a mechanic, a taxi-driver), cujos usos não são recomendados pela revista; e o sintagma “from [pais/região]” (e.g., from India), e os adjetivos de nacionalidade formados com os sufixos -ian, -ean, -an, -ese, -er, -ic, -ish, e -i (e.g., Italian, Korean, Portuguese, etc.), cujo uso é recomendado pela revista, em caso de ser necessária.
Resultados: Foram extraídas 156 ocorrências do sintagma “[número]-day/month/year-old” dos artigos de 2012-2015 e 166 dos de 2019-2022. Em contraste, do sintagma “in his / her [número + ´s´] / [plural do substantivo referente à década da idade]” foram encontrados menos ocorrências, tendo sido extraídas 3, dos casos clínicos de 2012-2015, e 19, dos de 2019-2022. Não foram encontradas referências a religiões, mas as ocorrências do constructo histórico-social de raça ou grupo étnico foram 12, no período de 2012-2015, e 10, de 2019-2022. As ocorrências do sintagma “from [pais]” e de nacionalidades referentes aos pacientes descritos foram tratadas em conjunto como estratégias recomendadas, tendo sido contabilizadas 19 ocorrências de 2012-2015 e 25 de 2019-2022. Por último, observou-se uma distribuição muito equilibrada das referências a ocupações e da especificidade das mesmas (e.g., taxi-driver vs. working at his computer), sendo a menção específica das ocupações mais frequente em ambos os períodos. No entanto, as menções das ocupações, no sentido de apresentar uma informação estreitamente relacionada com o quadro clínico e não ser apenas uma estratégia de contextualização global do caso, são mais frequentes no período de 2012-2015.
Conclusões: Embora um número importante de casos clínicos publicados após 2018 ainda indiquem a idade exata dos pacientes descritos, verifica-se um aumento no uso da fórmula geral de indicação da idade aproximada. Por outro lado, verifica-se uma ligeira diminuição da identificação da etnia bem como um pequeno aumento do uso do sintagma “from [pais/região]” e nacionalidade após 2018. Estes resultados configuram alterações na comunicação da comunidade do discurso e nas estratégias adotadas na criação e partilha de conhecimento, tendo por base um imperativo discursivo centrado: a) no doente e no seu direito à salvaguarda da sua privacidade e autodeterminação e b) na centralidade do seu papel que se estende da necessidade ética do consentimento até à valorização estrutural da sua perspetiva específica. Isto é, as convenções genéricas criadas pela BMJ Case Reports são, paulatinamente, compartilhadas e utilizadas pelos participantes da comunidade discursiva, o que indica uma possível consolidação e adaptação do género textual caso clínico aos desafios da era digital.
Referências
1. Nissen, T.,Wynn, R., The history of the case report: a selective review. JRSM open, 2014. 5(4): p. 2054270414523410.
2. Nissen, T.,Wynn, R., The recent history of the clinical case report: a narrative review. JRSM short reports, 2012. 3(12): p. 1-5.
3. Wickman, C., The medical case report as genre and social practice, in The Routledge handbook of scientific communication. 2021, Routledge. p. 213-223,
4. Kidd, M.R.,Saltman, D.C., Case reports at the vanguard of 21 st century medicine. 2012, Springer. p. 1-3,
5. ICMJE. Recommendations for the Conduct, Reporting, Editing, and Publication of Scholarly Work in Medical Journals. 2019 [cited 2023 june 7]; Guidelines]. Available from: https://www.icmje.org/icmje-recommendations.pdf.
6. Scott, M., WordSmith tools version 7. Liverpool: Lexical Analysis Software, 2018. 122.